Maternidade Incompleta

11 dias.

Foram 11 dias na UTI neonatal.

No terceiro dia de internação, a obstetra bateu na porta e eu já sabia.

- O corte cirúrgico está bem limpinho e a dor está controlada. Infelizmente, vou ter que te dar alta da cesárea.

Infelizmente.

É que essa alta hospitalar ninguém quer.

Ninguém quer sair do hospital sem o filho.

O Eduardo já vinha me preparando para isso. Na manhã da alta, ele veio falando:

- Amor, preciso te falar uma coisa. Hoje, quando nós formos embora, tu vai se sentir estranha. Vai bater uma deprê, um sentimento de culpa. Tu vai sentir que nós estamos abandonando ela, mas nós não estamos, ok?

E foi bem assim.

Quando cheguei em casa à noite, tudo me lembrava ela. Até os dois tubos de creme antiestrias que eu tinha comprado pra besuntar o barrigão do último mês que não veio.

Eu saí de casa grávida e voltei sem a barriga. E sem a Olívia.

À noite, eu dormia e acordava de hora em hora olhando para o telefone, achando que alguém da UTI estava ligando para me dar alguma (má) notícia. Essa apreensão só terminava quando, pela manhã, eu ia para o hospital e via o rostinho dela.

.......


A UTI neonatal é um mundo à parte; uma porta que se abre e não fecha mais.

Eu ficava lá das nove da manhã às nove da noite. Só não ficava mais porque insistiam que eu precisava descansar, e não tinha sofá ao lado dos bercinhos.

Isso era um pouco irritante; a insistência de que eu precisava descansar. Absolutamente impossível. A própria rotina da UTI neonatal te impede de descansar.

Funciona assim: para entrar, é necessário vestir avental e máscara. As mãos precisam ser lavadas cirurgicamente em uma das enormes cubas do corredor. Os celulares precisam ser higienizados com um produto específico e colocados dentro de sacos plásticos – muito embora o uso, dentro dos quartos, dependa de autorização dos enfermeiros. A primeira foto dela, após o nascimento, só consegui tirar dois dias depois, fazendo um furo no saco plástico perto da câmera do celular.

Dentro dos quartos, a vida funciona de três em três horas. As mães geralmente chegam meia hora antes para se prepararem para a amamentação. Trocam a fralda. Amamentam numa cadeira de escritório. Saem para tomar uma água. “Descansam” com o pescoço torto nos sofás da antessala da UTI. Vestem o avental. A máscara. Lavam as mãos cirurgicamente. Entram no quarto. Começa tudo outra vez. 

Uma vez por turno, nos intervalos de amamentação, as mães costumam se reunir na “sala de esgota”. Lá, é possível “ordenhar” leite para ser oferecido aos bebês durante a noite. À exceção das mães ainda internadas no próprio hospital, com acesso 24 horas à UTI, as mães que já receberam alta não costumam ficar no hospital à noite, embora não por falta de vontade.

Numa madrugada, ainda internada, enquanto alisava o cocuruto da cabeça da Olívia dentro da incubadora, ouvi a enfermeira dizer a uma mãe visivelmente exausta, que guarnecia o bebê da incubadora ao lado:

- Não precisa ficar aqui de madrugada, mãezinha. Ninguém vai te julgar.

Se precisava dizer, é porque alguém julgaria...

Como as “ordenhas” costumam durar em torno de meia hora, é na sala de esgota que as mães acabam se conhecendo melhor, no amor e na dor. Lá, também é necessária paramentação específica: avental, máscara, touca e luvas. Devidamente paramentadas, sentadinhas uma do lado da outra, com as tetas de fora e com as máquinas extratoras de leite encaixadas no peito, as mães assistem “Irmãos à Obra” ou “Vale a Pena Ver de Novo” enquanto falam sobre suas próprias experiências pessoais, mas sempre de olho no seio engatilhado no cone extrator, para que nenhuma gota de leite deixe de ser entornada no vidrinho coletor, apesar da advertência em uma das paredes: “O amor não se mede em ml´s”. Tente imaginar essa cena. Ou não.

- Isso aqui é uma humilhação – ouvi uma mãe dizer um dia – Mas o que a gente não faz pelos nossos pitoquinhos, né?

O calvário pessoal de cada uma também passava a ser conhecido.

- Sabe a Fulana que acabou de sair? Pois é, estava nos contando que teve gêmeos e que perdeu um deles semana passada. Eu nem consigo imaginar essa dor. Se meu filho morresse, eu morria junto com ele – confessou uma mãe, diplomada há apenas uma semana, com os olhos marejados.

Aquelas mães eram muito diferentes umas das outras: algumas tinham tido uma gravidez sabidamente de risco; outras, como eu, eram absolutamente saudáveis e foram surpreendidas por uma bolsa rota numa quinta-feira de Carnaval; algumas fizeram cesárea de emergência; outras insistiram no parto normal, apesar da prematuridade. Mas, ali na sala de esgota, havia um sentimento comum: o de que a maternidade já havia começado com o pé esquerdo, não entregando àquelas mães o que lhes havia sido prometido. Ou, pelo menos, o que elas achavam que lhes havia sido prometido.

          É que, à dor de refazer, todos os dias, aquele trajeto para a UTI, ainda se somava uma parcela de culpa e ressentimento.

          Culpa, por acreditarem que, de alguma forma, contribuíram para aquele desfecho. Eu mesma, até hoje, revisito minhas memórias em busca do gatilho daquela bolsa rota que me paralisou de medo.

          “Foi aquele agachamento na academia, com certeza”.

          “Não, foi o estresse, com certeza foi o estresse, eu vivo estressada. Coitadinha da criança, saiu correndo da barriga por causa da minha ansiedade!”.

          “O paracetamol, foi o paracetamol que eu tinha tomado semana passada, certeza”.

          - Útero não tem calendário, Milena – vive insistindo o Eduardo.

          Eu sei.

          Mas o sentimento de culpa permanece.

          Não é mesmo como dizem: “Nasce uma mãe, nasce uma culpa”?

          E tem também o ressentimento. Confesso que padeço dele menos do que de culpa.

          - Deixei de aproveitar um mês de barriga – confidenciou uma mãe a mim em uma das sessões de esgota – Nem consegui fazer meu book de gestante.

          - Eu tinha feito semana passada. As fotos chegaram hoje. Foi só na hora – comentou uma outra mãe, ouvindo nossa conversa.

          - Que sorte a tua – complementou outra, com certo tom de inveja – Meu filho não tem nem a saída de maternidade comprada.

          - O meu não tem nem o berço.

          - A minha cadeira de amamentação estava a caminho.

          - Não vai dar pra fazer o ensaio newborn de uma semana.

          - Não consegui amamentar na primeira hora de vida.

      “Maternidade incompleta”. Foi assim que ouvi uma mãe definir essa capacidade de se sentir menos mãe por coisas tão materialmente supérfluas, mas tão subjetivamente essenciais. Uma ilusão criada por alguém dentro de um escritório. Só pode.

Histórias e contexto. Acho que é isso que nos falta. É como aquela música do Caetano: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

E é por essas e outras que as minhas 33 semanas + 4 dias de gestação viram “quase” 34 semanas; que os 2.242kg da Olívia viram “quase” 2.300kg; e que os 11 dias de UTI viram “mais ou menos” uma semana.

Com quem estamos competindo, mesmo? 

....... 


No mesmo quarto da Olívia, tinha uma mãe com uma bebê mais prematura do que a Olívia. Sempre entrava antes para tentar alimentá-la via oral. A bebê não conseguia abocanhar o seio da mãe, nem a mamadeira, por ser muito pequena. Então só sobrava a seringa, antes que a alimentação fosse administrada pela sonda nasogástrica.

Eu ficava observando aquela mãe enquanto amamentava a Olívia. Ela ficava como que regando a boca da filha com o leite pela seringuinha, com um olhar meio cabisbaixo, mas perseverante: não queria que a sonda fosse utilizada. Permanecer sendo alimentada pela sonda era permanecer na UTI. Vez e outra, quando a menina engolia o leite, a mãe abria um sorriso. E eu sorria com ela.

Também comemorei quando o bebê do bercinho à esquerda ao da Olívia ganhou alta. Eu estava junto quando a mãe recebeu a notícia pela boca da pediatra. Começou a chorar, beijando o filho e já recolhendo os balões colocados na cabeceira do berço, trazidos em comemoração a cada um dos três mesversários do bebê – o que significava que aquela mãe já estava ali há três meses. Três. Meses.

Os corredores da UTI estavam cheios de histórias como essas, enquadradas na parede por mães e pais “incompletos”, em agradecimento pelo zelo e cuidado que foi dispensado a seus filhos.

Eu não gostava de olhar para aqueles quadros. Eram histórias difíceis, ilustradas com fotografias impactantes de bebês que nasceram com 500, 600 gramas. Não quilos. GRAMAS. Meses e mais meses de UTI.

É feio procurar consolo na dor do outro, mas eu buscava aqueles quadros quando me sentia triste. Não para ser lembrada do relativo conforto da minha situação, mas para ser (re)lembrada de que cada vida tem uma história, e de que aquelas mães eram tudo, menos incompletas.

....... 


Quando um bebê recebe alta da UTI, existe um ritual: todo mundo que está presente na unidade – pais, enfermeiros, médicos – reúnem-se no corredor para ouvir um discurso emocionado e aplaudir aquela nova, e agora completa, família.

Aplaudi diversos pais naqueles intermináveis 11 dias.

Um dia, chegou a minha vez, e fui aplaudida também.

Hoje, aplaudo a todas essas que a maternidade uniu, desejando um feliz  e abençoado Dia das Mães.









Comentários

  1. Nossa, lindo, me emocionei e também vivi está angústia. Graças a Deus nossa amada está conosco e bem esperta! Saiba que te admiro muito pela tua força! Parabéns minha filha por ser esta mãe maravilhosa!

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