61

 

Ela ficou doente na mesma semana da viagem. Não terrivelmente doente a ponto de cancelar o passeio – não, ela nunca faria isso –, mas desconfortavelmente doente do tipo nariz pingando e herpes acima do lábio superior, quase adentrando as narinas. Estava um bagaço, e era preciso uma solução para extrair-lhe o pouco de suco que ainda restava. O médico receitou um antibiótico. Mata-leão. Só esqueceu de dizer que mataria o resto da flora intestinal que ainda sobrevivera em meio àquele turbilhão de germes gripais. O que aconteceu a seguir talvez seja constrangedor. Mas, aos 61 anos, não há muito mais que ainda possa causar constrangimento. De qualquer forma, tentarei suavizar para preservar o pouco de dignidade que ainda restou aos envolvidos. Digamos que, com aquela quantidade de antibiótico, associada ao impacto físico de uma viagem de quase 10 horas de avião num corpo já combalido, um desarranjo era inevitável. Era verão em Nova Iorque, e as copas das árvores mal se mexiam. Caminhando em marcha atlética, ofegante e tentando vencer a resistência do ar mormacento do Central Park, encontrou um banheiro. As americanas permitiram-lhe furar a fila de acesso ao sanitário. Graças a Deus! Não há nada mais chique do que cagar em Nova Iorque.

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Nova Iorque já tentou derrubá-la mais de uma vez. Noutra ocasião, desta vez no inverno, lá estava ela, escalando um montinho cheio de neve nele novamente - o Central Park. Certamente procurava o ponto mais alto para fotografar o skyline da cidade e mandar para as primas. Certamente. Observávamos à distância, com os braços cruzados, como espectadores da tragédia. Não deu outra. Caiu de bunda com a bolsa à tiracolo, escorregando como uma criança. A descida foi vagarosa o suficiente para permitir o vislumbre quase em câmara lenta da vergonha que escorria em seu rosto como polenta mole no tacho. Levantou. Conferiu a roupa: a calça cheia de neve e lama. Voltar para o hotel para trocar de roupa? Não, nem pensar. Perderia muito tempo refazendo o caminho de ida, e não há tempo a ser perdido em dólar. Seguiu viagem. Subiu a 5ª Avenida assim mesmo, erguendo a cabeça para ler o nome nas vitrines: Louis Vuitton, Armani, Hugo Boss. Entrou na Trump Tower com a bunda cheia de lama. Chique demais.


Baita fiasquenta

Nessa mesma viagem, num frenesi de compras por conta dos descontos nas blusinhas, tomou em uma das mãos um suéter cor de areia, que estava jogado por cima das demais roupas numa loja de fast fashion. Enquanto tecia elogiosos comentários acerca da qualidade do tecido – segundo ela, “não se encontrava coisa igual no Brasil” – foi surpreendida pela arrogância inata de um americano, que avocava para si a propriedade do distinto blusão made in Bangladesh. Ela não falava inglês, e, apesar de sua crença pessoal de que um português bem pronunciado pudesse ser compreendido por todas as nacionalidades, não houve jeito de explicar ao esquentadinho que tudo não passava de um mal-entendido: ela não tinha a intenção de levar a peça, muito menos de violar o direito de propriedade de quem quer que fosse na land of the free, home of the brave. Não adiantou. O americano continuou ali, esbravejando o que presumo terem sido impropérios num inglês quase incompreensível. Até que o marido fez uma intervenção, postando-se entre ela e o gringo irascível. Começaram a xingar-se, cada um no seu próprio idioma. Uma discussão fomentada por xingamentos presumidos. Até que foi possível ouvir o marido insultar o americano chamando-o de “cabeça de caralho” em alto e bom som na última flor do Lácio. Os ânimos arrefeceram e o bate-boca dissolveu, como se o destemperado sujeitinho tivesse compreendido a magnitude da ofensa latina e desistido de achacar uma legítima cidadã campo-bonense. Poderia ser uma história de amor ou mais um perrengue chique. Tanto faz. Foi lindo de ver. Talvez o cidadão fosse careca; disso não lembro, mas presumo.


Andando com a calça cheia de terra
na Times Square

Ela também já escorregou nos ladrilhos da Alfama; já foi admoestada em Berlim por invadir a pista das bicicletas (“Radweg!!!”); por pouco não mobilizou uma equipe de solo da American Airlines ao dizer no balcão de check-in à atendente, num daqueles surtos de inconfidência, que tinha um “medo, medinho” de andar de avião; e quase matou de susto um inglês que, ao entrar no quarto errado de um hotel em Londres, foi recepcionado aos berros pela família brasileira que pensou estar sendo assaltada. É possível dizer, sem medo de errar, que já passou vergonha em várias partes do mundo, mas nunca esquecendo de que é brasileira e precisa andar pela rua com a bolsa em frente ao corpo.

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Days of fight, days of glory. Ela também teve dias de luta. Como quando começou a sentir aquela dor nas costas. Achou que era muscular; ia passar. Até que não conseguiu mais se sentar para trabalhar – então começou a ficar sério. Logo ela, que se vangloriava por “não ser manhosa”. Mas não é que não fosse “manhosa”; talvez apenas nunca tenha tido tempo para isso; talvez sempre tivesse dado muito mais colo do que recebido. Então descobriu uma hérnia de disco. Não, três. E precisou operar. Desta vez, num perrengue nem tão chique, foi hospitalizada porque não aguentaria esperar em casa pelo procedimento, de tanta dor que sentia. Ficou três dias aguardando transferência para o quarto, fazendo xixi na comadre e encomendando coisas que ela nunca iria usar pela AliExpress. Também pediu o computador para trabalhar, afinal, “não estava com a vida ganha”: tinha um gato e uma cadela salsicha para sustentar. É difícil fazê-la perder a energia e o bom humor; talvez só a Receita Federal e o site do Gov.br consigam isso com alguma facilidade.

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Todas essas são versões da mesma pessoa. Passear em Londres ou em Sapiranga? Tanto faz, desde que não esteja muito quente e ela tenha a companhia de quem ama. O estado anímico dela é sempre o mesmo, seja admirando a arquitetura histórica que se arvora ao redor do Tâmisa, seja reprovando o acúmulo de lixo nada idílico nas margens do Rio dos Sinos. Juro que não é exagero. Por expertise própria, sei bem como se parece uma cara de bunda quando vejo uma, e a dela não é assim, mesmo respirando os miasmas nauseabundos que emanam do espírito de porco brasileiro. Atribuo isso ao forte senso de trabalho dela. Ela foi criada assim, para acreditar que muitos dos valores de uma pessoa estão naquilo que ela é capaz de entregar ao mundo com o seu esforço, e que, embora não haja nenhuma garantia de retribuição compatível, a chance aumenta à medida que o trabalho continua. É isso que move ela como pessoa, e não há, de fato, ninguém mais resolutivo e comprometido do que ela. Ela é 100% solução, e digo 100% porque, mesmo para aquilo que parece insolúvel, ela oferece uma resposta, nem que seja somando as lágrimas dela às lágrimas de quem talvez não possa ou nem tenha mais o que chorar. Foi assim vocacionada que ela segurou a mão da sogra na cama do hospital, quando a vida da minha avó se esvaía como um candeeiro que lentamente se apaga; foi assim que ela limpou os vestígios do parto da neta, iniciado prematuramente, como se com isso ela também fosse capaz de enxugar as lágrimas (e a dor) da parturiente; e foi assim que ela me ajudou a enfrentar um ano difícil.

Vigiando a neta no primeiro dia
após a alta. Com o computador.
Sempre tem uma alteraçãozinha
de contrato pra fazer.

Talvez nunca tenha dito a ela, mas gosto de olhar para seus olhos. Quando ela chora, a cor verde de sua íris e os pigmentos marrons que irradiam a partir de sua pupila se intensificam, e são eles – os seus olhos – que me ofereceram consolo quando tudo o que ela podia oferecer era o olhar dela. Também foram nos olhos dela que, agora como mãe, eu conseguia ver refletida a tristeza da impotência, de não poder tirar meu sofrimento à mão, com a mesma facilidade com que ela consegue emitir um imposto de renda ou abrir um novo CNPJ. Também a dor da autocrítica, de pensar ter falhado, quem sabe por não ter conseguido incutir em mim a mesma resiliência que ela carrega tão naturalmente dentro dela. Por essa falta, me penitencio. Em minha defesa, só tenho a dizer que sempre foi muito difícil atingir o mesmo nível de grandeza dela.

Os lindos olhos dela que
brilham ainda mais pelo pinguinho.

A vida para ela sempre foi bola para frente. Ela não costuma olhar para trás, mesmo quando, ainda que sem admitir, algumas escolhas tenham sido difíceis, por opção ou necessidade. Só consegui dimensionar o quanto ela deve ter sofrido por retornar ao trabalho na semana seguinte ao parto quando, por experiência própria, gozei do privilégio que ela não teve, permanecendo em casa durante os primeiros meses de vida da minha filha, amamentando-a – outro privilégio que ela não teve. Ela observou, curiosa, descrente e talvez um pouco ressentida, as dores e as delícias de uma maternidade mais dedicada, talvez pensando como seria bom ter tido uma experiência parecida, embora resignada com o que ela costuma atribuir às exigências da vida.

Um dos motivos pelos quais a Olívia pulou
fora da barriga antes do tempo.

Essa atitude dela, sempre proativa, levou-me a acreditar que eu tudo poderia conseguir se trabalhasse, fosse honesta e comprometida. Quando, mais tarde, descobri que as coisas não funcionavam bem assim, fiquei ressentida de seus conselhos. Só a maternidade foi capaz de me ensinar que não teria cabimento ficar ressentida por ter recebido bons valores de minha própria mãe, e que, se houve algum equívoco, ele foi todo meu, por não ter compreendido que a filosofia dela era de meio, não de resultado. “A vida não te deve nada, minha filha”. Eu tinha realmente entendido tudo errado.

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 Eu juro que há momentos em que, pelos olhos dela, é possível ver um pedacinho de sua alma. Minha mãe tem uma alma generosa, e não acho que exista alguém de quem ela realmente desgoste pelo puro prazer de desgostar – a não ser da Receita Federal e dos fiscos em qualquer instância, mas, nesse caso, não são pessoas, mas entidades não personalizadas, cujo desgosto é público e notoriamente aceito.

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 Essa é a minha mãe, e os relatos aqui trazidos, sejam felizes, tristes ou cômicos, são os únicos capazes de dimensionar a grandeza dela e tudo o que de mais admirável ela tem: o bom humor, a resiliência, a honestidade e a coragem que ela precisou ter para permitir que eu já iniciasse a minha jornada com vantagens das quais ela própria não desfrutou. Mas sempre lembrando: a vida não me deve nada.

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Ela tem razão. A vida não nos deve nada, a não ser a passagem do tempo. E eu agradeço à sincronia dos nossos tempos. Que eles permaneçam sintonizados para todo o sempre.

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Feliz aniversário.

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Te amo.



Mini Betinha


Ela hoje, amanhã e sempre: sorrindo.












Comentários

  1. Foi a leitura mais linda que eu já vi minha filha! Obrigada por você ser quem você é, saiba que Te amo além da vida e já te falei isso inumeras vezes! Obrigada pela linda neta que você me deu que tb amo além da vida!!!

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  2. Complementando, o que seria a vida sem os perrengues, são eles que nos fazem dar boas risadas e lembrar sempre dos bons momentos que vivemos! Que venham muitos ainda pois estou preparada!

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