Gravidez: categoria não-ficção

Nunca sonhei em ser mãe.

Ainda crianças, as meninas imitam as adultas fazendo grinaldas de lençol e estufam as camisetas com falsos bebês de pano na barriga. Meu ideal de maternidade na infância se resumia a ter uma daquelas Barbies com a barriga removível, que, quando retirada, revelava um bebezinho dentro. Eu achava aquilo sensacional!

O problema é que brincar de Barbie dava muito trabalho. Eu gastava a maior parte do tempo da brincadeira arrumando a casinha das bonecas, as roupinhas, penteando e hidratando os cabelos delas com o melhor sabonete do banheiro da minha mãe. Quando chegava a parte lúdica propriamente dita, de simular a interação entre as bonecas e inventar as histórias, eu já estava cansada de tanto arrumar o cenário. Brincar de casinha dava muito trabalho! Criar filhos pentelhos também, especialmente os da Barbie, que não cresciam nunca.

Foi só em 2022, retornando de uma viagem, que deu aquele clique. Eu e o Eduardo já vínhamos falando sobre isso, sobre ter ou não ter filhos. Eu nunca tinha me imaginado como mãe (só canina), mas, depois daquela viagem, era como se eu precisasse de uma definição.

- A gente nem sabe se vai conseguir, amor. Quem sabe a gente para de cuidar e vê no que dá? - sugeriu o Eduardo.

- Deixar o acaso decidir?

- Isso mesmo.

O acaso decidiu que a gente conseguia, e foi no primeiro mês de “descuido” que a Olívia veio.

Eu ainda nem tinha feito o teste. Foi indo para uma aula de ioga que os sinais da nidação vieram, e era como se eu já estivesse esperando por eles.

O exame de farmácia foi quase inconclusivo, de tão translúcida que aquela segunda linha da faixa de teste apareceu na fita. O Eduardo já tinha sido avisado da minha suspeita por WhatsApp, pois, como boa ansiosa, eu não tinha condições psicológicas de esperar o resultado de um exame laboratorial para preparar uma surpresa e, só então, dar a notícia.

Foi só no dia seguinte que fiz o exame de laboratório. Cheguei em casa e fiquei dando F5 aguardando o resultado. É uma sensação muito estranha essa, de esperar pelo resultado de um exame de gravidez. A vida pode mudar num clique, num resultado positivo. E mudou.

Chorei copiosamente olhando aquele laudo, sozinha, naquela manhã do dia 21 de julho. Chorei, de felicidade e de medo, MUITO medo. Uma hora, você está sozinha; no minuto seguinte, não está mais. Mal dormi naquela noite, e nas seguintes. Cabeça a milhão, pensando como a vida seria dali pra frente.

Estar grávida é uma experiência da qual eu só senti falta quando acabou, porque a memória é sempre mais gentil quando não se está debaixo de mau tempo.

É que a parte boa e romanceada da gravidez todo mundo já sabe, até quem nunca engravidou. É a propaganda do Zafari; o som emocionante dos primeiros batimentos no ultrassom; dois corações batendo num corpo só; a maravilhosa sensação tátil dos primeiros chutes; contar dedinhos de mãos e pés no segundo morfológico; ver o contorno de olhos, nariz e boca na imagem 3D, já entrando naquele jogo divertido de palpites familiares sobre a herança genética da criança (“parece com o pai”, “não, a boca é da mãe”, “que nada, é a cara do vô!”); acima de tudo, as deliciosas expectativas para o futuro.

Mas, para chegar no futuro, era necessário viver o presente. E ninguém fala sobre o presente, sobre a não-ficção da gravidez.

O corpo muda, e a mente nem sempre acompanha na mesma velocidade. Era o meu caso.

Começou atingindo o órgão mais importante do meu corpo: o estômago. O primeiro trimestre foi de muita náusea. Uma constante sensação de queimação e enjoo, que não descambava em vômito, mas também não me deixava dormir direito. Os sintomas arrefecerem um pouco no segundo trimestre, depois retornaram numa forma mais evoluída: refluxo.

Daí teve a paranoia da toxoplasmose, o pesadelo de toda gestante. Uma doença desgraçada que tem no gato um de seus potenciais transmissores, mas que também pode ser contraída por meio de frutas e vegetais contaminados ou carne mal passada. Apesar de toda uma infância fazendo pss-pss-pss e alisando os gatos de rua; depois de comer muito moranguinho da horta da minha vó, onde os gatos provavelmente mijavam, eis que descubro não ter contraído esse raio dessa doença. Na prática, eu não tinha contraído nem bicho de pé, mas achava que teria toxoplasmose ingerindo qualquer milímetro quadrado de tempero verde que viesse salpicado em cima da comida; que o hambúrguer era sempre “BEM passado e sem salada, por favor”; e que qualquer enfeite de broto de feijão em cima massa era uma ameaça letal. Salada só em casa, e com um ritual de higienização de deixar os fiscais da vigilância sanitária orgulhosos.

O golpe baixo veio com o exame da curva glicêmica. É um exame que consiste em ingerir um líquido açucarado, semelhante a um copo de Fruki com mais 10 colheres de açúcar dentro. São feitas três coletas de sangue num intervalo de duas horas, a fim de avaliar a efetividade da insulina em diminuir a glicose daquele líquido horroroso. Mesmo nas mulheres não diabéticas, é possível haver alterações de resultado, em função dos hormônios da gravidez que começam a atuar ali pela 24ª semana de gestação. Na terceira e última medição, apresentei uma pequena alteração no valor de referência; pequena, mas suficiente para já caracterizar a diabetes gestacional. Fiquei revoltadíssima. Eu, que fazia como mandava o figurino; que me exercitava todos os dias; que comia exemplarmente; que tinha feito todos os exames pré-concepcionais; que estava com o IMC normal; que plantaria bananeira se a obstetra dissesse que era necessário; eu, euzinha, estava com diabetes gestacional. Mais uma prova de que a maternidade não estava nem aí para os meus planos.

Virei uma xiita da alimentação. Meus armários pareciam o feed do Instagram de alguma influencer fitness: deprimente. Zero álcool e zero açúcar. E nem era pra tanto. Eu conseguia controlar a glicemia com muita facilidade, só reduzindo quantidades. Ainda assim, eu era a louca do HGT. Furava o dedo com a fita da Accu-Chek a cada refeição, mesmo após a obstetra ter me dispensado dessa obrigação. Foi uma fase difícil, em que comer tinha virado só uma necessidade, não mais um prazer.

Percebi que minha frustração alimentar tinha atingido o ápice ao almoçar num restaurante perto de casa. Lá estava eu, barrigudinha, usando um vestidinho ridículo cor-sim, cor-não, suada, no auge do verão, esperando para pagar enquanto fitava com olhar perdido uma caixa de alfajores que estava em cima do balcão de atendimento. O atendente me olhou com olhar de pena e disse:

- Toma moça, pode pegar. Cortesia da casa - e abriu um sorriso complacente.

De duas, uma: ou achou que eu não tinha condições de pagar, ou pensou, “misericórdia, essa guria tá com uma cara horrível, precisa de um doce!”. E eu precisava. Mas não podia comer! Peguei a cortesia e dei para o Eduardo.

No geral, minha gravidez foi cheia de marcos: esperar pelas 12 semanas, esperar pelo primeiro morfológico, esperar pelo segundo morfológico, pelo ecocardio, pela medida do colo uterino, pelo resultado da toxoplasmose todo trimestre... Era um constante “esperar pelo próximo exame para saber se está tudo bem”. Foi assim até as 33 semanas, quando as preocupações com a gravidez acabaram, mas foram substituídas por outras preocupações novas.

Por fim, teve a fase da mudança física, quando a barriga começou a crescer. Aquelas meninas que estufavam a barriga com bebês de pano esperam ansiosas por esse momento. Eu tinha sentimentos dúbios. Ora tirava diversas fotos de perfil da barriguinha crescendo no espelho, ora chorava. Sim, chorava. Não sabia exatamente o motivo. Agora eu acho que entendo. Era o novo “eu” se despedindo do antigo “eu”. Uma espécie de luto pelo qual toda mãe passa, em maior ou menor medida. Você começa a entender que existe mais alguém além de você mesma. A vida muda, e, mesmo que eu soubesse que seria para melhor, era preciso dizer adeus àquela versão autocentrada que eu conhecia há 32 anos. O corpo era só o começo. Então, ora eu amava o meu novo shape, ora eu me sentia uma potencial candidata a mascote da Oktoberfest, com aquela barriga baixa e protuberante.

Falou em formato de barriga? Então falou em palpiteiros. E são muitos! Quando você descobre que está grávida, parece que seu corpo vira público. Todo mundo opina e põe a mão na barriga sem permissão.

- Deve ser um menino - palpitou uma senhorinha metida na saída de um almoço quando eu estava no auge dos 7 meses.

- Não, é uma menina - respondi.

- Nossa, mas tua barriga está tão baixa - retrucou.

- Pois é, pra tu ver como não quer dizer, né?

“Está com azia? Então o nenê vai nascer cabeludo”.

“Tem que tomar cerveja preta pra ter leite”.

“Nossa, nem dá pra acreditar que tu está grávida, quase não tem barriga”, ou “nossa, só 6 meses e com esse barrigão!”.

“Não pode comer nada com canela em cima. Nem tomar café. Nem tomar chimarrão. Nem chá. Nem pegar sol sem protetor solar porque dá mancha”.

“Aproveita pra dormir, depois não vai conseguir”.

Esse último comentário era o que mais me irritava. Sabe por quê? Porque eu ADORO dormir! Mas não existe estoque de sono! Então, durma bastante durante a gravidez. Ou não durma. No final, não vai fazer a menor diferença, e esse comentário não vai passar de um pitaco inconveniente sobre as milhares de coisas que você deveria fazer na gravidez. Eu sei, eu sei que as pessoas não fazem por mal. Mas o mau humor no final da gestação também não é intencional. Assim como não é intencional o inchaço, de fazer sumir aquele ossinho da lateral do pé; o formigamento nas pernas; a dor nas costas; a falta de ar e de disposição; e, ah, as hemorroidas (ninguém nunca associa hemorroidas à gravidez olhando aquele book de gestante cheio de florzinhas e poses angelicais, né?).

E quando você começa a pensar na via de parto? A barriga cresce e a criança precisa sair de algum jeito. Vai doer? Vai deixar marcas? E será que toda aquela pele vai voltar pro lugar, meu Deus?! Não para de esticar! 

O que eu posso dizer é que essa fase do “eu” antigo acabou quando eu soube que a Olívia ia nascer com 33 semanas. Naquele momento, o meu “eu” antigo morreu, e eu já não me importava se tinha sido fácil ou difícil, se a barriga ia ficar flácida ou não, se ia doer ou se ia ser indolor. E aquela cicatriz da cesariana acabou sendo a parte mais bonita do meu corpo.

A gravidez é bonita e não é. Porque, depois, a maternidade vai ser isso. Paradoxal. Bipolar. Fácil e difícil. Riso e choro. Animação e exaustão. Música clássica e heavy metal. Quer que passe rápido, e quer que passe devagar ao mesmo tempo. 

........

Enquanto olho a Olívia dormir, ainda penso na Barbie e nos seus filhos pentelhos que não crescem. Que sorte a dela, não? Mas também penso: “Coitada da Barbie, vive num puerpério eterno!”. Mas isso é pano pra outra manga…



Meu ideal de maternidade na infância.
"Life in plastic is fantastic!".


Eu e o vaso sanitário na 7ª semana.
Puro romance.



Aquele positivo discretinho.
"Meio" grávida.







Comentários

  1. Pois então, surgiu uma nova Milena, muito mais amorosa e
    Compreensiva…uma mãezona!! Viva a nossa Olivia linda e fofa!!!

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  2. Espero um livro de coletâneas com os textos da maternidade! Mães se entendem (de modo geral..), as situações são muito parecidas. Um beijo em vcs!
    Raquel e Isabela

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