O português da minha vó

Eu tenho uma tese, cientificamente baseada em achismo, de que todo problema, em alguma medida, é causado, ou agudizado, pela (falta de) comunicação. Mas eu trabalho com burocracia e sofro com a dificuldade que as pessoas têm de comunicar-se, então, provavelmente, minha “tese” tem um viés de confirmação. Mesmo assim, eu gosto de comunicação e, consequentemente, da língua como uma de suas ferramentas. Foi isso que me levou à leitura de “Latim em Pó” quando vi ele lá na Amazon com o selo de “1º mais vendido em linguística”.

Apesar de achar que seria muito mais conveniente falar espanhol, como o resto da América Latina, eu gosto do português. Tenho a convicção de que algumas construções linguísticas apenas são possíveis no português. E é aí que entra minha avó.

Minha finada avó paterna não tinha nem o ensino fundamental completo. A atenção rarefeita da juventude me fez refletir sobre o palavreado dela apenas tardiamente, quando ela já não estava mais aqui.

Dia desses, resgatando com meu pai algumas palavras e expressões que ela utilizava com certa frequência, fiquei surpresa ao descobrir que, muitas delas, não apenas existiam, como estavam gramaticalmente corretas, ao contrário do que meu preconceito parecia supor.

Quando a visita chegava na casa dela meio pra baixo, sem muita animação, dizia:

- Fulana estava muito desenxabida!

Se a Fulana vinha acompanhada de um filho pequeno meio inquieto e bisbilhoteiro, dizia que a criança era uma purgante ou enfarenta.

Encafifado dizia de quem cismava ou ficava pensativo sobre alguma coisa.

- É um estanhado! – dizia daquele parente cara de pau que aparecia todo risonho pedindo algum favor.

O meu pai, quando criança, vivia doente. Ela se condoía dele dizendo:

- Coitado do “Milso”, era muito empalamado.

Sabe aquele médico atencioso, que atende bem? É o profissional que todos gavam, elogiam. Mas cuidado: nem sempre dá pra acreditar na opinião dos outros. Nesse caso, minha vó dizia que não dava pra se fiar.

E as expressões. Ah, as expressões que ela usava!

- Beltrana ficou lá, sentada no canto da sala, tirando um tempão - em outras palavras, ficou lá observando todo mundo com o olho clínico, embora ela mesma fosse campeã na arte de “tirar um tempão” dos outros.

Quando o vô descia do pé de butiá com os braços todos ralados, exclamava:

- Criador amado!

Ou:

- Deus nos defenda!

Ou:

- Meu Jesus amado!

Era o jeito dela de admoestar o vô para que, logo em seguida, os dois voltassem a sorver tranquilamente o chimarrão na garagem, “tirando um tempão” de quem passasse na rua, aguardando a nossa chegada em frente à casa verde água da Rua Dom Pedro II.

Português é isso.

É vivo. É história. É memória.

...

 

Para os olhinhos da minha Olívia, separei esse trechinho final do livro:

“Você, que recebe e reconcebe a herança de milhares de anos de migrações e mudanças, da história de seres humanos de quatro continentes distintos que vieram formar as palavras às quais você dará sentidos novos. Um mundo inteiro reunido para que você possa expressar sentimentos que ainda não sabe que vai ter, um repertório de frases ainda desconhecidas que você nem imagina que vai poder pronunciar.

Uma língua que foi de muita gente antes de ser tua também.

Eu daqui me despeço e te digo em bom latim clássico (saluare) mastigado pela plebe do Império Romano (salvare), estropiado pelos celtiberos, desentendido pelos germânicos, tingido pelos árabes (salvar), imposto aos indígenas da América (sarvá) e finalmente alterado pelos padrões silábicos dos idiomas de negros africanos:

Saravá.

Seja bem-vinda”.


O tal do livro que eu li.



Minha vó, "tirando um tempão"
de mim no colo.


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