O dia em que virei adulta


Começou com uma rouquidão.

- Ih, que vozinha fraca é essa? - questionou meu pai, jocosamente, provavelmente pronto para fazer alguma piada relacionada à masculinidade daquele novo tom de voz. Piada de tiozão, que os dois adoravam fazer entre si.

- Pois é, pois é - respondeu ele, sorrindo de canto e com os braços cruzados, daquele jeitinho dele.

- Mas está com dor de garganta, vô? - perguntei.

- Não, nada.

- Deve ser laringite, por causa dessa variação térmica. Logo passa - ponderei.

Estávamos no final do verão, quando os finais de tarde começam a ficar menos mormacentos por conta da brisa fresca que já vem anunciando o outono. Era bem possível que fosse algo relacionado à temperatura, então continuamos a matear tranquilamente na garagem de casa.

Mas, depois de duas semanas, não passou. Continuou ainda mais rouco e visivelmente mais fraco.

Foi na médica.

“Pneumonia”, diagnosticou ela.

Antibiótico.

Não passou.

- Amor, o que tu acha que pode ser? Em que médico levamos ele? - perguntei ao Eduardo, então no 4º ano da faculdade de Medicina.

O Eduardo já vinha demonstrando alguma preocupação com aquele quadro. Fazia cara de quem sabia alguma coisa, mas não tinha certeza ou não queria falar para não magoar.

- Eu levaria num otorrino, amor. Marca logo, tem aquele de Novo Hamburgo.

Assim fizemos.

Marca consulta.

Endoscopia nasal.

Nada.

Ressonância magnética. O laudo ficaria pronto em alguns dias.

Num final de tarde, quando o laudo ainda não tinha saído, ele não se sentiu bem e meu pai o levou ao pronto atendimento da Unimed.

Eu lembro daquele dia. Domingo. Eu e o Eduardo, esparramados no sofá de casa; minha mãe reclinada na cadeira ao lado. Meu pai entra de supetão com um documento nas mãos porta adentro. Senta no primeiro degrau da escada de madeira que dá acesso ao segundo piso. Leva as mãos ao rosto e começa a chorar, inconsolável. Um choro que os filhos não costumam ver os pais chorarem.

Todo mundo levanta de inopino, se aproximando dele em questionamentos e consolo prévio.

- Eles já têm o resultado da ressonância. Tem uma massa no pulmão. Muito grande, segundo a médica. Ela não sabe nem como ele está em pé.

Foi assim que descobrimos que meu avô tinha câncer. Mais tarde, descobriríamos que era um câncer em estágio avançado, tão avançado que estava pressionando as cordas vocais, causando o quadro de rouquidão.

A partir daquele dia, a vida passou a andar em outro ritmo. Como se um cronômetro tivesse sido ligado em nossas cabeças, dormíamos um sono forçado. Acordávamos pela manhã com aquele aperto no peito, aquela angústia, a tristeza do coração já se manifestando antes que a mente pudesse lembrar o motivo de tanta dor. Como um computador recém formatado, nossa memória abriu espaço para todos os registros visuais e sensoriais possíveis dos momentos em que passávamos com ele. Lembro até do cheiro de pão com linguiça na mesa posta numa de nossas últimas jantas; do cheiro do café se esparramando até a porta de entrada, como que convidando a entrar e ficar para sempre...

Alguns dias após o diagnóstico, o oncologista havia nos convencido da necessidade de fazer uma biópsia do pulmão para identificar o tipo de tumor, ainda que para orientar um tratamento paliativo. Assim foi feito.

Naquele dia, fiquei com ele no hospital após o procedimento. Passamos a tarde juntos. Ele parecia bem; dizia sentir-se bem. Caminhou sozinho até o banheiro, com pouca ou nenhuma ajuda, e parecia, de certa forma, revigorado.

Assim que o café da tarde chegou no quarto, ele começou espontaneamente a me contar fatos triviais de sua vida como nunca tinha feito. Contou das festas que fazia com os amigos na adolescência; de como acabou em Campo Bom para arranjar trabalho e ajudar os pais em casa; e até de uma certa detenção policial que sofreu por alguma indisciplina juvenil numa saída de baile. Tentei extrair o máximo de informação possível daquele avô que, apesar de viajado, era muito humilde para se gabar de qualquer coisa que fosse. Carteiraço com a carteirinha do Tribunal? Uma única vez, no pós-operatório da segunda ponte de safena da vida, quando, ainda desorientado, saiu pelo corredor do hospital, de avental e com a bunda de fora, invocando seu direito de ir e vir.

- Eu vivi uma vida boa - recordou ele, com o olhar perdido nos carros que passavam janela afora.

- Ainda vive, vô. Ainda vive – retruquei.

Ele não respondeu. Só sorriu.  


O final da tarde chegou e ele já estava “com o pé que era um leque” para ir embora, como dizia minha avô. Aguardava com ansiedade a chegada do médico para receber alta, tanto que havia me pedido ajuda para colocar a roupa e já ficar pronto para a chegada do doutor.

- Pronto para voltar pra casa, seu Olívio? – questionou o médico.

- Ô! – respondeu ele, já calçando os chinelinhos posicionados ao lado da cama.

- O senhor está se sentindo bem, mesmo? Tem certeza?

- Aham. Tô bem, sim.

Voltou para casa.

Mas a noite mal havia começado quando se sentiu mal novamente. Falta de ar. Tinha dificuldade até para levantar-se. Mesmo assim, quando cheguei na casa dele, insistiu que eu escolhesse uma calça minimamente apresentável para retornar ao pronto atendimento (calça de moletom não servia, segundo ele). Sempre muito vaidoso.

No início da noite, novamente no pronto atendimento, os médicos não sabiam mais o que fazer. O aporte de oxigênio disponível a nível ambulatorial já não estava mais sendo suficiente, e havia começado a se apresentar um quadro de dor lancinante nas costas. A solução era transferir para o hospital.

Foi a primeira vez que ele disse em voz alta:

- Estou com medo.

Na cabeça dos netos, os avós não têm medo. Era inconcebível para mim que meu avô tivesse medo de alguma coisa; aquele avô, que nunca tinha chorado na minha frente, nem mesmo de felicidade quando o Inter ganhou o mundial...

“Estou com medo”. Foi incrivelmente difícil de ouvir aquilo. Mas despertou dentro de mim uma vontade de ficar junto dele e não largar nunca mais; de fazer a dor dele minha; de tirar a dor com a mão.

Acompanhei ele na ambulância, no banco da frente, sempre fazendo questão de virar para trás e lembrar, “tô aqui, vô”.

No hospital, uma sequência de trapalhadas e indiferença. Entramos pela emergência e, assim que o quarto do andar foi liberado, fomos para lá como que escorraçados, esquecidos no recinto escuro, sem profissional de referência para orientar o que se deve fazer quando uma pessoa diz que não consegue respirar.

O quadro dele sofreu uma reviravolta completa em menos de 24 horas. Já sentado na beirada da cama do hospital, arfava em busca de ar.

- Respira junto comigo, vô! – foi só o que me ocorreu dizer, olho a olho, com as mãos repousando nos ombros dele.

Minha prima também havia chegado. Ficou lá com ele enquanto eu corria corredor afora buscando ajuda no posto de enfermagem.

- Quando o médico chega, pelo amor de Deus?! – perguntei, já perdendo o controle.

- É como eu te disse, o médico já foi avisado, está saindo de um outro atendimento – respondeu um enfermeiro estressadinho por detrás do computador, fazendo pouco caso de ajudar.

- Mas alguma coisa precisa ser feita antes disso, ele está com falta de ar! – respondi, desabrochando em lágrimas.

Desse momento em diante, minhas lembranças são flashes: minha mãe vindo ao meu encontro no corredor, aumentando o tom de voz para que alguma providência fosse tomada; a equipe de enfermagem finalmente reagindo para oferecer algum conforto ao doente; o médico chegando para discutir cuidados paliativos.

Aquela noite foi longa. Ficamos eu e minha prima, juntas dele no quarto do hospital, unidas pelo amor ao vô: ela, sempre muito mais amorosa e gentil; eu, sempre muito mais ansiosa e inconformada; nós duas, igualmente atentas ao bip-bip do monitor, escutando a respiração ofegante e ruidosa no silêncio da noite, enquanto alisávamos aquele cabelinho preto sempre bem alinhado, alheias ao calor da pele, que paulatinamente se esvaía.


Meu avô partiu na noite seguinte, depois de ter recebido a visita de toda a família. O falecimento dele marcou, em definitivo, minha passagem da adolescência para a vida adulta. Aos 23 anos, a morte ainda era, para mim, uma espécie de abstração. Nunca tinha olhado diretamente nos olhos dela.


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Não acho que a morte seja um dia que valha a pena viver. A morte não é uma escolha para que se possa optar por ela. Mas é possível que seja minimamente confortável e cheia de amor. O amor, sim, é facultativo e transcendental. Que tenhamos todos nós um pouco dele para o resto de nossas vidas.
 

 


 

 

 

 

 

 

Comentários

  1. Nossa que lindo…colocou exatamente como foi e como
    Nos sentimos! 😭

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  2. Bruna Manoela Nunes26 outubro, 2023 04:25

    Muito verdadeiro teu relato… O episódio com meu avô foi parecido.
    Já pensei em ler esse livro várias vezes, mas tenho certas ressalvas…

    Beijos!

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    Respostas
    1. Não é um livro NADA fácil, mesmo. Levei um tempo para digerir; fiquei com uma sensação de melancolia por vários dias, até que resolvi colocar no papel o que a leitura despertou em mim. Algumas coisas só saem da gente por escrito.

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