A felicidade tem quatro patas e um focinho gelado
Começou na
infância. Andava na rua, via um gato e precisava alisar. Era pss-pss-pss e lá
vinha o gato, de rabo levantado, se esfregando nas pernas e enchendo a barra da
calça de pelos. Eu alisava e andava um pouco, para ver se ele me seguia. Com os
cachorros era mais fácil: bastava ir fazendo uma trilha com as bolinhas de
Fandangos ou do Cheetos que minha vó comprava no mercado para mim.
- Para de
fazer isso, Milena! Ele vai acabar não saindo lá da frente de casa! -
repreendia a minha vó.
Mas era
exatamente o que eu queria: alisar o bichinho à vontade na frente de casa e,
depois, convencer minha vó ou minha mãe a ficar com ele.
Um dia,
consegui atrair um dócil gatinho preto, que tinha apenas a ponta do rabo
branca. Ele, pequeninho, adentrou o pátio da minha vó, onde eu passava as
tardes, deslizando elegantemente por entre as grades do portão. Lá fiquei eu,
alisando aquela corcundinha macia que subia e descia ao sabor do movimento da
minha mão, me deliciando com o sonzinho do rom-rom. Minha mãe foi me buscar
final da tarde, e eu já estava com a cara de inocente pronta, preparada para
lutar pelo gato. Ela se compadeceu com o tamanho da criaturinha e levamos ele
dentro de uma caixa de sapatos para o apartamento onde morávamos.
- Só até
acharmos um dono - ela advertiu.
Arrumamos
um cantinho para ele na área de serviço. Água, ração, algumas folhas de jornal
para o xixi. Ele caminhou livre pelo apartamento com as perninhas secas, dando
aqueles divertidos pulinhos de filhote. A cada gargalhada da minha mãe, sentia
renovarem minhas esperanças de ficar com a guarda definitiva do gato. Mas a
esperança não resistiu aos primeiros raios de sol, e o gato encontrou uma
família já na manhã seguinte.
Não foram
poucos os esforços da minha mãe para aplacar esse meu desejo de ter um animal
de estimação. É que ela não queria ter gato ou cachorro em apartamento. Dizia
que o espaço era muito pequeno; que ficávamos fora o dia inteiro, e não teria
quem cuidasse do bichinho. Mas minha avó morava numa casa, e eu ficava lá
durante a semana. Então a alternativa era presentear minha vó com um pet.
Pronto. Resolvido.
É numa
dessas que veio o Xuxo. Lembro da minha mãe chegando com ele lá na
garagem da minha avó, dentro de uma caixinha. Um gato siamês lindo, com
olhinhos de um azul intenso.
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Xuxo com lasers e Milena Felícia |
- O nome
dele é Xuxo. Ainda precisamos castrar ele.
“Castrar?
Deve ser tipo adestrar”, pensei. E o nome? Xuxo! Perfeito! Igual ao cachorro da
Xuxa, no filme “Super Xuxa Contra o Baixo Astral”, que eu alugava na locadora
toda semana.
Mas, como
todo gato, o Xuxo prezava pela independência dele. Não gostava de criança e
reagia às tentativas de ser mantido à força nos meus braços me arranhando. Meu
primeiro amor não correspondido.
Também era
tão bonito quanto ingrato. Sumia por semanas - para o desespero da minha vó,
que tinha se apegado ao bicho - e reaparecia num dia qualquer, miando como uma
sirene, todo esgualepado.
Até que um
dia foi atropelado. Quase morreu. Terminado o período de convalescença,
resolveram fazer a tal castração. Eu ouvia dizer que era isso que resolveria as
noitadas dele; a fama de “rueiro” e namoradeiro. Não entendia a relação… De
qualquer forma, não adiantou. Sumiu num dia e nunca mais apareceu. Anos depois,
numa conversa descuidada da minha mãe com a minha avó, descobri que ele tinha
sumido, mesmo, mas tinha sido encontrado um tempo depois, dentro da piscina da
vizinha. Morto. Me senti traída em descobrir daquela maneira.
- Não
queríamos que tu ficasse triste. Mas já passou, faz tempo. Ele está bem, agora
- argumentou minha mãe.
Não
adiantou. Chorei retroativamente pela morte do Xuxo, apesar de ele não ter
cumprido a missão para a qual fora recrutado, que era a de me fazer companhia.
Meu luto
foi breve, porque, algum tempo depois do desaparecimento do Xuxo, veio o
Pluto, um lindo Cocker de pelagem preta encaracolada, mas hiperativo.
Destruiu o jardim da minha vó e travou uma guerra ferrenha contra as roupas que
eram estendidas no varal. Só parava quieto quando eu tirava da boca dele os
dentes de leite que estavam moles. Deitava de barriga pra cima com o focinho no
meu colo, e curtia aquele momento em que eu brincava de ser veterinária.
Mas minha avó
não resistiu às traquinagens do Pluto e abreviou a estada dele. Foi adotado por
uma família que morava num sítio, onde ele poderia gastar toda aquela energia
de filhotão. Só que a família tinha uma menina pequena que tinha dificuldade de
pronunciar o “L” do nome. Então o Pluto, para não virar michê, ganhou outro
nome. Fiquei magoada ao saber daquilo. Trocaram o nome que EU tinha escolhido!
Do cachorro, não sobrou nem o nome…
Depois
disso, minha vó cismou que, se era pra ter um cachorro, que fosse um fox paulistinha,
que ela achava “lindo”. Eu não sabia que cachorro era aquele, nem fazia a
mínima ideia de onde é que ela tinha surgido com aquela raça de cachorro.
Talvez tivesse tirado de algum filme da sessão da tarde, ou de algum programa
da Márcia Goldschmidt. Então lá foi minha mãe atrás do tal fox paulistinha, e
voltou com o Tofi, assim batizado pela minha vó.
O Tofi era
um cachorro pernudo, com um cotoco de rabo e com a pelagem branca com manchas
pretas, igual uma vaquinha. O pobre diabo mal tinha chegado, e já tinha
começado a apresentar uns sintomas estranhos. Indisposição, perda de pelo,
inapetência.
- É
cinomose - diagnosticou o veterinário. É uma doença bem grave. O pessoal de
onde tu comprou não deve ter tomado os cuidados necessários...
Então lá se
foi minha mãe de novo, tirar satisfação com o dono da pecuária onde tinha
comprado o pobre Tofi. Lembro de ficar esperando no carro enquanto minha mãe
debatia muito acaloradamente com o sujeitinho que tinha feito a venda. Ele
insistia que não, não poderia ser cinomose, tinha certeza do tratamento que
dava aos bichos dele. Nesse vaivém de acusações, que quase acabou em vias de
fato, o Tofi foi devolvido ao vendedor para ser tratado. Voltou algumas semanas
depois, curado, com a saúde restaurada. Não era cinomose, e o sujeitinho,
afinal de contas, não era tão conversador fiado.
O Tofi era
um companheiro de ocasião. Aturava minhas tentativas de ser doutrinado com as
aulas que eu costumava lecionar na varanda da minha vó, munida de uma mini
lousa verde. Mas, na primeira oportunidade de sair para a rua, dava no pé;
bastava que minha vó fizesse menção de se aproximar do portão com o molho de
chaves. Era um aluno pouco dedicado. No fim das contas, só o Tobi, um
outro cachorro vira-lata ancião que minha vó também cuidava, é que acabava
tendo paciência para assistir às minhas aulas, paciência que eu retribuía tapando-o
com um cobertorzinho quente nos dias frios, em cima de uma cadeira. Eu era uma
professora muito preocupada com o bem-estar dos meus alunos.
Com o
tempo, o Tofi virou mais um cachorro de rua do que um cão de companhia. Gostava
da liberdade que minha vó concedia a ele de vez em quando para dar umas
voltinhas na vizinhança. Além do mais, “cachorro não é gente”, dizia minha vó,
então eu não estava autorizada a levar o Tofi para debaixo das cobertas para
assistir um filme da sessão da tarde.
Minha fama
de cachorreira continuou. E eu adorava quando precisava ir junto com alguém na
pecuária dos anos 90, porque lá era chance certa de ver algum filhotinho
esperando por um dono.
Numa
dessas, dei de cara com um linguicinha amarelo, pelo qual me apaixonei de
imediato. Estava sentado dentro de uma gaiolinha, balançando o rabo para mim, e
eu imediatamente me coloquei a alisá-lo, enfiando os dedos por entre as grades.
Nem meu pai resistiu àquelas orelhinhas caídas e olhar de pidão: pegou no colo,
alisou e acabou se apaixonando também. O problema é que nós continuávamos
morando em apartamento, e ainda vigorava a regra de “nenhum bicho em
apartamento”. Além do mais, minha avó materna já tinha tido a cota dela de
animais de estimação. A solução era levar para a casa da outra vó, mãe do meu
pai.
- Nós vamos
dizer pra vó e pro vô que ganhamos ele numa rifa - confabulou meu pai comigo,
prestes a trazer o cachorro pra casa.
Eu nem
hesitei em concordar; fazia qualquer negócio para ter um filhote fofinho
daqueles comigo. Voltamos à pecuária no dia seguinte para resgatar o nosso
falso prêmio da rifa; eu, mais do que feliz, com o cachorro no colo dentro do
carro, alisando aquele pelinho amarelo macio.
Meu avô,
outro cachorreiro assumido, topou a conversa do “prêmio de rifa”. Foi
facilmente cativado assim que o cachorro mordiscou a barra da calça dele.
Aquilo amoleceu o coração do meu avô, que já tinha o coração mole.
- O nome
dele é Fluke, vô.
- Fuke?
Fruki? Funk?
E foi da
dificuldade dos meus avós de pronunciar outro nome americanizado que eu tinha
visto em algum filme que o Fluke virou Scooby.
O Scooby
era um cachorro salsicha amarelo extremamente temperamental. Eu pouco conseguia
brincar com ele, porque ele tinha se habituado à rotina pacata dos meus avós,
recebendo todos os mimos de um filho temporão. Ia junto pra praia, deitava no
chão enquanto meus avós tomavam chimarrão na frente de casa (ganhando os
chocolates que caíam do pratinho servido às visitas), acompanhava meu avô na
caminhadinha matinal dele pela vizinhança, e também costumava “convidar” meu
avô para fazer uma sesta depois do almoço, balançando o corpo e o focinho em
direção ao quarto. Eu logo entendi que o Scooby seria muito mais uma companhia
para o meu avô do que para mim. E ele cumpriu essa missão por 15 anos, quando
morreu de velho.
- Foi-se
nosso cão - lamentou meu avô entristecido, num dia de verão, enquanto mateava
comigo na garagem.
Meu avô o
enterrou no pátio dos fundos de casa, enrolado num cobertorzinho (porque ele
“gostava do cobertor e sentia muito frio”, segundo dizia).
O Scooby
morreu apenas alguns meses antes do meu avô. O engraçado é que, pouco antes do
meu avô também despedir-se dessa vida, apareceu, lá pela casa dele, um filhote
de gato amarelo, amarelo tal qual a pelagem do Scooby. O gato apareceu como se
já conhecesse a casa, andando pelos cômodos com naturalidade, e por lá ficou.
Minha vó deu a ele o nome de Chico, ou “Kiko da Mãe”, como
carinhosamente chamava aquele gato que acabou fazendo companhia a ela depois da
partida do meu avô. O único problema do Chico é que ele tinha uns acessos de
loucura e, entre uma brincadeira e outra, gostava de dar umas mordidas na perna
seca da minha vó.
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"Kiko da mãe" |
- Mudou a
cor do olho! Pega o mata moscas! - tentava se defender minha avó quando
percebia que o Chico tinha sido tomado por um arroubo de loucura.
Não
adiantava muito. Vez e outra minha vó era vitimada por aquelas brincadeiras um
pouco agressivas e saía com a perna mordida.
- A senhora
aqui outra vez, dona Lúcia - recepcionava a médica da Unimed para tratar mais
uma mordida do Chico - A senhora precisa dar cabo nesse gato!
- De que
jeito? É a minha companhia! - retrucava minha avó, enquanto a médica examinava
sua frágil pele idosa lesionada pelos ataques vampirescos do Chico.
Foi só
depois de nos mudamos para uma casa que, realmente, consegui viver a
experiência de ter um animal de estimação, com todo o amor e a dor envolvida.
Foi com a minha linda Dini.
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Dini: meu primeiro amor |
Dini (ou
Jeannie, como no seriado “Jeannie é um Gênio”, de onde minha mãe provavelmente
tirou o nome), era outra cachorra salsicha que veio dar continuidade a esse
amor que começamos a cultivar pelos linguicinhas, também conhecidos como
Daschund ou Teckel. Compramos a Dini de um anúncio de jornal, ainda filhote. A
Dini era uma mocinha com a pelagem preta reluzente. Foi minha primeira
companhia verdadeira. Comia pipoca à tarde comigo no sofá, andava de rede
(apesar de ficar enjoada de tanto que eu balançava), dormia assistindo filme
comigo e adorava dar uma voltinha na quadra. Mas, à noite e aos finais de
semana, era toda do meu pai. Adorava ficar enroladinha embaixo do blusão ou do
casaco dele assistindo a algum jogo do Inter. Era uma assídua comedora de Bis e
Ruffles (adorávamos ouvir o barulhinho do creck-creck que ela fazia mastigando
uma lâmina de batata crocante!).
Engraçado
como, passados mais de 17 anos, algumas memórias dela ainda estão frescas na
minha mente. Lembro dela se mijando toda de felicidade quando recebíamos alguma
visita na nossa casa amarela; fazendo buracos no jardim e se escondendo debaixo
do carro quando via minha mãe chegar, para não ser repreendida; da implicância
dela com o gato da vizinha, especialmente quando ele pulava o muro; das pernas
das cadeiras da garagem todas roídas pelos dentinhos dela; do saco cheio de
ossinhos brancos que o pai comprava na pecuária, e do prazer dela em receber um
osso novo recém retirado do saco.
Foi um
tempo muito bom...
Mas, nunca
manhã, acordamos e a Dini não andava mais. Sentia dor. Quase avançou no meu
pai, logo ela, que era toda dele. Devia ter muita dor. E foi assim, da pior
maneira possível, que descobrimos que os linguicinhas possuem uma predisposição
natural a problemas de coluna, pela desproporção do tronco (longo demais) com
as pernas (curtas demais), gerando uma sobrecarga da coluna.
Na época,
não existia tratamento acessível, nem muita informação sobre a doença dela. A
internet ainda engatinhava, e até gente se operando da coluna era coisa que
causava espanto.
Eu era
adolescente, e minha memória era rarefeita como são as memórias adolescentes. A
morte é uma entidade distante da juventude, e a noção de que algumas situações
pudessem ser irreversíveis passava longe de mim. O pai daria um jeito, com
certeza. Mas não foi assim.
Não lembro
dos detalhes.
Não levei
no veterinário.
Não fiquei
junto dela.
Só lembro
do pai avisando que ela tinha morrido, e de nós dois, correndo para a casa do
vô, um mais choroso que o outro, lamentando a partida precoce da nossa cachorra
salsicha preta.
Choramos,
todos juntos, por muito tempo; o pai, mais do que todos nós. Eu ainda era
adolescente e estava envolvida nas tolices de adolescente, então conseguia me
distrair mais facilmente. Mas o pai, não. Sofreu muito mais do que eu pela
filha canina, até naquele 17 de dezembro de 2006, dia do mundial do Inter, que
deveria ser só de comemoração para ele. Uma coisa estava muito clara para ele:
não queria cachorro por um bom tempo. Já tinha sofrido o suficiente.
Mas minha
mãe era da opinião contrária.
Casa tinha
que ter cachorro.
O ano
virou, o coração sossegou um pouquinho, e lá fomos nós em busca de um novo amor
– à revelia do meu pai, ainda profundamente entristecido.
Foi numa
pecuária lá em Novo Hamburgo.
Ela estava
de banho tomado, filhote, devia ter uns três meses. A estrelinha grudada na
testa, o bafinho de cachorro novo. Peguei ela no colo, recostei contra o meu
peito, e lá ela ficou, enquanto eu andava pela loja à procura de uma caminha e
de todos os petrechos de cachorro.
- Mas ela é
tão pequeninha! – espantou-se minha mãe.
- Ela é a
menor da ninhada. Ainda temos ela e a irmãzinha – disse o vendedor, já exibindo
em uma das mãos uma outra cachorra salsicha, amarela, também de banho tomado,
também de estrelinha na testa, também irresistivelmente fofa.
Foi então
que minha mãe teve a ideia de levar as duas: a salsicha amarela para “tomar
conta” da irmã preta, que parecia que “não ia vingar”.
Assim
entraram na minha vida as inesquecíveis Preta e Mel.
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Preta e Mel: meus anjos de quatro patas |
Preta e Mel
foram um amor inexplicável. Me encontraram numa fase da vida em que eu já tinha
maturidade suficiente para entender a responsabilidade que ter um cachorro
demandava.
Banho?
Sempre aos sábados. Esperavam ansiosamente por ele, pois sabiam que, ao final,
seriam agraciadas com um petisco. Adoravam a massagem que eu fazia quando usava
o secador de cabelos para secar o pelo delas.
Colo?
Sempre e em qualquer lugar. No sofá, na cama, na sala de espera do veterinário.
Preta gostava mais. Fazia cara de pidona para subir no sofá e adorava dormir de
conchinha ou em cima do peito, apesar dos 8,5kg que pesava no auge de sua forma
física.
Comida?
Sim, por favor! Apesar dos cuidados que tínhamos com a alimentação delas – não
ganhavam Ruffles nem chocolate como a Dini –, adoravam comer. O sofá só perdia
espaço quando tinha alguém na cozinha (era a chance delas de ganhar uma fatia
de qualquer coisa que caísse no chão). Nos últimos anos, já idosa, a Preta
lembrava meu pai dos remédios que o veterinário tinha receitado se dirigindo à
cozinha e aguardando em frente à geladeira; é que os comprimidos dela sempre
vinham enrolados em uma fatia generosa de presunto. Mas também era adepta de uma
alimentação mais natural: melancia, banana e maçã eram as frutas preferidas.
Amor?
Ganhavam de sobra e davam mais ainda. Até os dentes delas eu escoava com um
produto à base de clorexidina, para o escândalo da minha avó, que sempre
reafirmava que cachorro não era gente. Nunca dei a mínima.
A Preta era
o que eu chamava de cachorro desossado: bastava pegar no colo pelas duas
patinhas dianteiras e levantar como nenê, que ela amolecia como se não tivesse
um único osso no corpo. Virava a cabeça para o lado, pronta para receber um
cheiro no pescoço. Adorava ser cheirada, mordida e alisada. Vivia de barriga
para cima, tamanha a confiança que tinha na gente.
A Mel já
era uma alemoazinha mais temperamental e reservada. Talvez pelo problema na
coluna que também teve, assim como a Dini, mas do qual se recuperou depois de
muita dedicação nossa. Também gostava de ganhar colo e dormir no sofá, mas
sempre nos nossos pés: valorizava o espaço e a privacidade dela, mantendo uma
distância segura. Tinha uma coleção de bichinhos para trucidar, e demorou a
superar a implicância com a Mintsia, a gata vira-lata que apareceu na
casa dos meus pais com seis gatinhos na barriga, resolvendo que ali também
seria o lar dela.
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Mintsia literária |
Nunca
escondi minha preferência pela Preta. Ela sempre foi muito mais dengosa e
grudada em mim. Balançava o rabo quando eu descia as escadas, louca por um
colinho, e, segundo minha mãe, “ficava diferente” quando eu voltava de Porto
Alegre às sextas-feiras para ver ela.
- Tu está
querendo voltar a Campo Bom só pra ver o cachorro, né, Milena? – me
desmascarava o Eduardo, quando eu insistia que queria visitar meus pais no
final de semana. Em parte, era verdade.
Preta teve
câncer, com um acometimento cerebral que se tornou incompatível com a vida. Nos
seus últimos dias, pressionava a cabeça contra as paredes e andava
compulsivamente pela casa, sem rumo, até que não conseguiu mais comer. Tinha 15
anos.
Mel morreu
de velha. Já tinha doença renal crônica e apresentava demência (“Alzheimer
canino”, segundo o veterinário); só não se esquecia da comida que o gato
deixava no prato, aguardando meu pai abrir a porta para poder filar os restos. Não
enxergava nem ouvia mais muita coisa no último ano de sua vida, mas era cuidada
com muito amor pelo meu pai, que sempre reservava um cantinho do sofá para ela.
Fiquei
junto das duas no fim de suas vidas. Eduardo costuma dizer que a morte delas
foi mais digna e bonita que de muito ser humano. Ainda não me convenci de que a
morte pode ser bonita; mas confortável e respeitosa, tenho certeza de que foi.
Quem gosta
de bicho vive um luto não autorizado quando um animal de estimação morre. Chorei
muito com a partida delas. Mais pela Preta do que pela Mel, não minto. Mel
partiu quando a Olívia já estava aqui, e essa circunstância, de certa forma,
amenizou a minha dor.
Até hoje,
toco a campainha da casa dos meus pais e espero ouvir um latido nos fundos; ainda
hoje escuto o barulho agitado do galope delas, das patinhas batendo contra o
piso fazendo tic-tic-tic; ainda hoje sinto saudade de apertar um focinho
molhado, de cheirar o cangote da Preta e de puxar os pelinhos daquelas
almofadinhas macias...
É bom que
esse “céu de cachorro” realmente exista.
....
Tenho
ciência de que nem todo mundo compreende esse amor pelos animais. Apenas posso
dizer, por vivência própria, que ter um animal de estimação é uma experiência
enriquecedora, que me ajudou a compreender e a fortalecer minha própria
humanidade.
Guardo um
pouco de todos os bichinhos que passaram pela minha vida: do Xuxo, o gato
siamês namoradeiro; do Pluto, o charmoso (e hiperativo) Cocker preto; do Scooby,
o xodó do vô e da vó; da Dini, a linguicinha rebolativa; e, em especial, de
Preta e Mel, meus amores em forma de cachorro. Guardo um pouco até daqueles com
os quais não convivi, ou com os quais não convivo, com tanta assiduidade: do
Kojack, o dálmata simpático e carinhoso; do Alfredo (ou, formalmente, Alfredo
Fredsen Svredsen Negsen), o gato universitário preto do Eduardo, que abandonou
a faculdade e foi viver da arte dele na chácara dos avós; do Pelé, o comedor de
chocolate; e da Nina e do Gregório, que vigiavam meu namoro nos tempos de
escola.
A todos eles, minha gratidão pelos ensinamentos, e por terem tornado minha infância, minha adolescência e minha “adultescência” infinitamente mais completa.
Este texto me emocionou verdadeiramente! Lembro de cada detalhe!
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