Olívia


- Mãe! Tem um sangramento, vem aqui!

Choro compulsivo.

- Calma, filha, calma. Vamos voltar para o hospital.

- Vou ligar para a médica de novo. Não acredito que isso está acontecendo! Não acredito! Ela não pode nascer agora, ainda é muito cedo!

          - Filha, calma, tu precisa te acalmar. Quem sabe tu deita um pouco enquanto fala com a médica.

           Deita na cama.

Dor lombar.

Cólica. Forte.

Perda líquida.

Volta para o banheiro.

Mais líquido.

          - Olha aqui, está saindo muito líquido!

          Tira foto.

Manda para a obstetra pelo WhatsApp: “Líquido? Volta para o hospital, temos que saber se é a bolsa que rompeu”.

          Início do choro compulsivo.

        - Não tô acreditando, isso não pode estar acontecendo! Ela mandou voltar para o hospital! Eu fiz tudo certinho!

          - Te acalma, nós já vamos para o hospital, vai se resolver.

          - Mãe, pega uma calcinha e um pijama pra mim.

        A mãe também atônita. Fica dividida entre tentar acalmar a filha e separar uma muda de roupa no armário.

          - Achou? Rápido, mãe, tô com muita dor!

          - Eu não tô achando o pijama, onde que tu coloca?

          - Não, não é aí. Esse é o armário do Eduardo! Deixa que eu pego.

          Duas calcinhas e dois pijamas.

   - Coloca naquela sacola que está ali – ordena, apontando para a ecobag dependurada no cabideiro de ferro, comprada no ano passado numa loja de departamento.

           As duas descem do terceiro andar do prédio pelo elevador.

Fevereiro.

Sol.

Calor.

          - Espera aqui na frente que eu vou pegar o carro. Estacionei lá adiante. Só vou dar a volta na quadra.

          A volta na quadra parece uma eternidade.

          Recomeça o choro enquanto aguarda embaixo do toldo encardido do prédio.

      faxineira varre a calçada e, esboçando um sorriso, puxa assunto, ignorando o semblante de desespero:

- Para quando é o bebê?

Resposta seca, sem encontrar os olhos da inquisidora:

- Era pra ser final de março.

“Era”, como que pressagiando.

- Minha netinha também é para março!

Sorte dela...

A mãe chega.

Acelera o carro, que sacoleja no paralelepípedo desnivelado.

- Nem uma rua que preste, que nojo desse país! – amaldiçoa a tudo e a todos, segurando no puta-merda.

Antevéspera do final de semana de Carnaval.

Trânsito.

Todo mundo se atravessando na frente.

Chega no hospital.

- Me deixa ali na emergência. A gente se encontra lá no sétimo andar. Tu sabe como chegar, né?

- Sei, sim, vai lá.

Entra no saguão.

Casal de idosos na frente, esperando atendimento.

Atravessa na frente, olhando em desespero para a atendente.

- Moça, emergência obstétrica!

Cadeira de rodas.

Senta na cadeira segurando a barriga. Como se fosse adiantar.

A atendente gira a chave e o elevador chega. Manda todo mundo descer.

Sobe com o braço escorado na cadeira de rodas, escondendo o rosto de incredulidade.

Chega na recepção.

- Qual a queixa?

- Cólica e perda líquida. Dei entrada aqui hoje mais cedo. Minha obstetra mandou voltar para reavaliar.

- Você está sozinha?

- Não, minha acompanhante já está chegando. Só foi estacionar.

- Consegue nos alcançar identidade e a carteira do convênio?

- Sim!

Espera na recepção.

Na recepção, gestantes com seus barrigões de nove meses. Maquiadas. Carregadas de malas, com nomes de "Enzos" e "Valentinas" bordados na frente. Para elas, tudo dentro do programado.

Compara com a ecobag colorida, que faz as vezes de uma possível bolsa de maternidade, organizada às pressas, com apenas duas calcinhas e dois pijamas dentro.

A pasta do pré-natal também dentro, com todos os exames da gravidez realizados até então, com o visor branco indicando: “Pré-natal Olívia”. A única coisa organizada no meio da bagunça.

Inveja. Tristeza. Raiva. Autocomiseração. Tudo junto.

Espera.

Espera.

Mais espera.

- Moça, vai demorar muito pr’eu ser atendida?

- Não, já passamos o caso para a equipe. Você deve ser a próxima.

A mãe chega.

Contorcionismo de dor.

Chamam o nome.

Finalmente!

- Posso entrar contigo?

- Com certeza!

Entra na salinha.

- Consegue levantar da cadeira de rodas e sentar na maca? – questiona a enfermeira.

- Consigo.

Deita na maca.

Começa a monitorização.

Cardiotocografia.

- O médico já vai chegar.

- A minha obstetra já foi avisada?

- Sim, o doutor vai falar contigo.

A enfermeira sai da sala.

Olhar fixo no aparelho de monitorização.

Bip-bip.

- Mãe, tá tudo normal ali?

- Acho que sim, tá marcando os batimentos. Tá constante.

O médico plantonista chega.

Se apresenta.

Pergunta os sintomas.

Exame de toque.

- É, tua bolsa rompeu.

- E o que isso significa?

- Que ela vai nascer.

Choro.

Compulsivo.

Soluçando.

- Mas ela não pode nascer agora, ainda é muito cedo!

- Com quantas semanas tu está?

- 33 + 4.

Silêncio.

- Tem a última ecografia?

- Sim, dentro daquela sacola.

Aponta para a ecobag colorida.

O médico procura a ecografia no calhamaço de exames

Encontra.

Examina.

Choro misturado com nova onda de dor.

O médico tenta acalmar.

- Calma, estou vendo aqui no exame, ela está com um peso interessante.

“Interessante? O que isso significa?!"

- Mas ela vai ter que ir para a UTI?

- Sim. É por volta dessa idade gestacional que os bebês aprendem a respirar sozinhos, então provavelmente vai precisar de monitorização.

Choro de desespero.

- Liga para o Eduardo, mãe! Onde ele está?

A mãe pega o telefone.

- Eduardo, tu já está chegando? Sim, ela vai nascer hoje.

Desliga o telefone.

- Ele já está estacionando.

Eduardo chega. Troca com a mãe, resignada à sala de espera.

- Ainda bem que tu chegou, ela vai nascer, não acredito!

- Calma, amor, tá tudo bem.

Mas ele também chorou.

Olhos marejados, que o autocontrole não esconde.

O médico volta.

- Tu chegou a discutir com a tua obstetra a via de parto?

Vontade súbita de mandar à merda. “Para de falar em parto! Ainda não é a hora!”, pensa.

- Bem superficialmente na última consulta, não deu tempo. Mas acho que não tenho condições de um parto normal.

- Condições obstétricas tu tem.

- O que for melhor pra ela, então.

O médico sai da sala, pensando o que fazer com a resposta vaga.

O bip-bip do monitor diminui.

A enfermeira chama o médico de volta.

Ergue o pescoço para ver.

Os batimentos baixaram!

O médico volta.

- Deita para a esquerda.

Nada.

- Deita para a direita.

Nada.

- Fica de barriga pra cima.

Nada.

- Amor, o que está acontecendo?

- Ela está com um pouco de bradicardia, mas calma, tu está sendo monitorizada.

Medo.

Pavor.

DOR.

O médico fala no celular com a outra obstetra.

- Já está chegando? O exame está acusando uma bradi, se for demorar muito, eu vou abrindo ela.

Vai ser cesárea.

Ela decidiu a hora e a via de parto.

Tira colar (o pingente mais tarde se perde).

Tira brinco.

Tira o vestido de oncinha molhado.

Veste o avental.

Deita na maca.

Vai para a sala de cirurgia.

Barulho de pacote sendo aberto.

Sensação de frio, apesar do calor do verão.

Chega o anestesista.

- Meu nome é Fulano de Tal. Vou ser teu anestesista hoje. Preciso que tu vire de costas e se encolha em posição fetal pra fazermos a raqui.

Sensação de choque.

Tenta de novo.

Nova agulhada.

A dor começa a passar.

Formigamento.

Os pés não mexem mais.

A sonda vesical é colocada.

Tricotomia no facão. A depilação estava programada para o final da gestação. Mas não este final. 

A obstetra chega.

Vão começar.

Choro com solucinhos.

Mil pensamentos na cabeça.

"Será que vai respirar?"

"Será que vai ser saudável?"

"Será que vai (sobre)viver?!"

O anestesista coloca uma música.

- Por que está chorando, mãezinha?

- Porque ainda não era a hora dela.

O anestesista saca o celular e mostra a foto de uma moça. Ruiva. Olhos claros. Bonita.

- Tá vendo essa aqui? É minha sobrinha, nasceu com 28 semanas. Linda e saudável. Eles escolhem a hora deles. Vai ser assim daqui pra frente.

Mas a sensação de medo não arrefece. O choro só fica mais baixo.

A música toca no fundo.

Não lembra a melodia.

Os obstetras tagarelam amenidades.

Espera.

E então o anúncio: ela vai nascer!

O anestesista adverte:

- Quando ela nascer, eu vou baixar a cortina aqui, mas só pra lembrar que tu não pode tirar as mãos do lado, ok? Temos o soro e todos os teus acessos para monitorização.

- Tá bom - anui com a cabeça.

Coração batendo acelerado.

As lágrimas não dão trégua.

Vai nascer!

O pai vai narrando ao lado da maca o que se descortina, com a voz embargada:

- Fica tranquila, amor. Respira fundo. Tô vendo aqui, o líquido está bem claro. Isso é bom, isso é bom, isso é ótimo. Ó, ela tá nascendo. Agora tu vai sentir puxar um pouquinho mais forte.

A obstetra anuncia:

- Pode baixar que ela vai vir. Olha aê, tá vindo! Tem uma circularzinha no pescoço, era a circular que estava incomodando ela!

- Ai, meu Deus, ela é tão pequenininha!

- Olha aqui, vai chorar! Está com o chorinho trancado, nasceu muito bem! – complementa a obstetra.

Soluçando, emocionada.

- Chora, meu amor!

Os médicos tentam acalmar:

- Olha o pezinho, mãe! “Eu tô bem, mãe!”.

Começa o choro. Dela. Melhor som do mundo.

Os óculos da mãe embaçados pelo próprio choro. Mas a mãe vê ela. Encosta nela. Alisa o rostinho. Cheira. Tira até uma foto.

Ela nasceu!

E sabe respirar!

- Olívia, seja bem-vinda, Olívia! – deseja o anestesista.

Então essa é a sensação.

Aquela.

Clichê.

Que só quem vive entende.

Sim, seja muito bem-vinda, minha filha.



* Esta crônica é dedicada à minha filha, Olívia, que me deu um novo coração depois de parar o antigo.





Comentários

  1. Lindo minha filha! Emocionante!

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  2. Chorei lendo essa crônica. Me fez lembrar que são os clichês que dão mais cor à vida. <3 Sejam muito felizes, família!

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  3. Em prantos!!! Lindo Milena.!!! Olívia é linda e saudável!!!

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  4. Bruna M. Nunes17 março, 2023 14:13

    Testemunho lindo!!! Que Olívia tenha sempre muita saúde e motivos para comemorar! Parabéns aos papais! Beijão

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  5. Muito linda esta crônica, uma linda homenagem para a nossa Olívia. A Olívia veio para este mundo pra alegrar ainda mais os nossos corações.

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